RELATOS DA II GUERRA MUNDIAL: "...E SE FOSSE VOCÊ?"

19-09-2010 15:49

Como educador, tenho sempre tentado buscar alternativas pedagógicas que possam efetivamente aproximar meus alunos da experiência humana neste planeta, com suas contradições, avanços e retrocessos, suas alternativas de sobrevivência, de produção cultural e de relação com o Outro ao longo do tempo. A tarefa, evidentemente, não é fácil, mas o caminho que tem se mostrado o de melhores resultados, em vários momentos de minha atuação pedagógica, é o que chamei de “...e se fosse você?” Na verdade, esse tipo de experiência não chega a ser novidade e são várias as alternativas que poderiam ser assim denominadas: os já comuns “jornais da História” (escritos, falados - ao vivo, em sala de aula ou gravados, como programas de rádio - ou em vídeo); a “máquina do tempo”, através do qual o aluno torna-se observador dos acontecimentos históricos etc. Meu relato refere-se, especificamente, a uma experiência 1999. O conteúdo específico era a II Guerra Mundial, o nazismo e os campos de concentração.
Como uma das avaliações do 2º bimestre letivo, propus a seguinte questão:
Alternativa A: Você é um soldado nazista, tem 17 anos, e acabou de entrar para as SS. Estamos em junho de 1940 e a Alemanha está no auge do seu poder. Escreva uma carta para sua namorada falando sobre a guerra e por que você adora o Fürher Adolf Hitler.
Alternativa B: Você é um judeu (uma judia) que acaba de ser transferido do gueto de Varsóvia para o campo de concentração de Auschwitz, considerado como um verdadeiro matadouro. Anote no seu diário pessoal suas expectativas, temores ou esperanças com relação à nova situação.
Evidentemente, os alunos necessitavam de informações que os aproximassem dessa realidade complexa e traumática que foi a experiência do nazismo e suas conseqüências. Era preciso que se emocionassem com ela sem, no entanto, abrir mão da racionalidade e me pareceu que a exibição do filme A lista de Schindler, de Steven Spielberg, era uma boa aproximação. Servi-me, também de uma seção de imagens fotográficas da época, obtidas, particularmente, do site do Arquivo Nacional dos EUA na Internet, e de relatos e imagens extraídos de publicações relativas à II Guerra. Achei ser importante também utilizar o filme A Onda, feito para a TV em 1981 e hoje praticamente impossível de ser revisto. Apesar de a narrativa ser pouco convincente para olhares acostumados à TV de hoje e de a fotografia parecer um tanto "chapada" para os padrões atuais, o filme tem vários méritos: conta uma história real, o personagem principal é um professor de História e o tema central de suas aulas é o Hitler e o nazismo.
A partir de então, com esses subsídios, a turma passou a produzir seus "próprios" relatos. O resultado foi, do meu orgulhoso ponto de vista, comovente. Mas, ao mesmo tempo, foi uma constatação de que é possível a reflexão crítica e a produção de conhecimento mesmo entre adolescentes moradores da periferia (bairro da Japuíba) de uma cidade periférica (Angra dos Reis), filhos de trabalhadores, que, devido às suas limitações de classe, são geralmente tidos como, no mínimo, obtusos. Nesses "relatos" estão presentes não apenas a angústia e o sofrimento dos judeus (ou o entusiasmo exagerado do soldado nazista adolescente) mas também a delicada e precisa compreensão de um tempo duro e difícil cujo resultado, como sabemos, foi a morte de alguns milhões de pessoas e a consolidação de um estado de coisas em nível internacional cujas conseqüências ainda hoje mobilizam nossa atenção, indignação e medo.
Com a preocupação de que o trabalho não tivesse um sentido maniqueísta, que desprezasse a experiência de milhões de alemães envolvidos por um clima de euforia ou medo, incentivei-os a tentarem se colocar no lugar de alemães favoráveis e/ou encantados com os discursos de Hitler e seus assessores, particularmente os envolvidos com forças militares ou paramilitares. A escolha dos alunos, no entanto, foi individual e não tive o menor controle sobre ela.
Para que os próprios alunos pudessem avaliar e refletir sobre seu trabalho, ao final do processo produzi um caderno contendo todos os “relatos” da turma misturados com alguns relatos verdadeiros, como este abaixo, de um prisioneiro anônimo, e, em seguida, o de dois alunos (que, como disse, não tiveram qualquer contato com relatos verídicos):
“As chamas subiam do forno crematório atrás do nosso alojamento. No começo só havia uma fraca coluna de fumaça. Mas, depois, nuvens cinzas cobriram todo o céu sobre o campo de concentração. O vento soprava aquelas nuvens na nossa direção, trazendo o cheiro de carne queimada, como se estivessem assando um ganso em um forno, só que mais forte. Eu mal podia respirar. De repente, se podia ouvir o grito de milhares de vozes. ‘Está vindo lá da cova’, disse Irene. ‘Eles estão sendo queimados vivos!’” [1]

“Meu diário amigo:
Hoje eu fui transferido para o campo de concentração e dizem que lá [sic] é um verdadeiro matadouro.
Toda vez que um soldado abre a porta eu penso que é a minha vez. Eu estou com muito medo, não consigo dormir.
A noite não parece mais ter fim. Quando chega o dia o meu coração dispara, aí começam as mesmas coisas: o soldado chega para buscar mais judeus.
Estou ficando fraco por falta de comida, todos estão morrendo aos poucos.
Já não vejo mais a hora de tudo isso acabar, não tenho mais esperança.
Se meu dia não chegar, chegará o dia de todos nós.
Enfim, estamos vivos, eu e mais alguns companheiros.” [2]

“As esperanças de sair daqui com vida são remotas. Estou há 3 dias em outro campo de concentração nazista, não sei por que tanta perseguição com o meu povo; como sofremos!
Tive meus filhos arrancados de mim e por onde [anda] meu marido? Dói em mim não ter notícias deles. O que estará [acontecendo] ou já terá acontecido com eles? São tantas torturas, fuzilamentos, câmaras de gás. Tenho saudade da nossa vida em tempos bons.
Íamos para passeios, ficávamos horas a fio juntos nos amando.
Hoje as pessoas que ficam perto de mim são aparentemente estranhas, mas unidas pelo sofrimento.
Os olhares sem esperanças, o sangue como suor, não temos nossos cabelos, má alimentação, o frio é intenso, as roupas são insuficientes, não há lugar para dormirmos com conforto, nada aqui é agradável. Só dor, ódio, maus tratos, sofrimento. Mas se eu sair viva irei para um lugar com ar puro e liberdade de vida, procurarei meus queri-dos filhos e meu amado marido.” [3]

Acreditei ser importante que os alunos não tivessem acesso prévio a relatos verdadeiros para que não fossem influenciados pela narrativa dos reais protagonistas. Evidentemente, já haviam seguramente sido influenciados pelo impacto de A Lista de Schindler, pela narrativa de A Onda e pelas fotos que apresentei, mas em nenhum dos casos houve qualquer tipo de acesso a relatos escritos, o que fez com que a turma fosse obrigada a transformar em "experiência" o impacto visual, emocional e intelectual que tomar conhecimento com a realidade do nazismo e dos campos de concentração lhes causara.
Apesar de tratar de um tema árduo, duro como a II Guerra Mundial, o nazismo e os campos de concentração - do qual a maioria de nós, professores de História, já temos um pré-conceito, seja qual for o nosso envolvimento intelectual e/ou emocional com este tema específico - pretendi trabalhar com uma “pedagogia da sensibilidade”, ao contrário da “pedagogia” de Hitler, exposta no relato abaixo:
"Minha pedagogia é dura. Toda fraqueza deve ser chutada para longe. Nós criaremos uma juventude diante da qual o velho mundo vai se encolher de medo. Eu quero uma juventude enérgica, impiedosa, decidida, cruel. Eu quero ver o esplêndido animal predador brotar de seus olhos. Assim, eu irei extinguir milhares de anos de domesticação humana." [4]
Evidentemente, como o fazer pedagógico neste começo de milênio torna-se cada vez mais uma tarefa delicada, tentei sempre ter em conta as advertências com relação à questão da “verdade”. Como lem-bra Tomaz Tadeu da Silva:
"É importante [...] uma abordagem que vê como central o papel da linguagem e do discurso na construção do “re-al” e da “verdade”. Também aqui o saber e o conhecimento são vistos menos em sua relação epistemológica com a “realidade” e o “verdadeiro” e muito mais em seu nexo com relações de poder. Conhecer o Outro nessa perspectiva é menos descrevê-lo em sua “essência” e “natureza” e muito mais representá-lo, torná-lo presente de uma forma que o subordine, o inferiorize. O lugar do Outro não é nunca função de alguma posição fixa, objetiva, mas sempre uma posição que lhe é atribuída pelo poder da representação e do discurso do grupo e da visão dominante. A noção de “representação” é, pois, essencial a essa crítica." [5]
Minha preocupação, ao propor a atividade aos meus alunos, foi a de resgatar a importância da construção do conhecimento em sala de aula, para o que a idéia de “representação” é essencial, sem que, no entanto, deixemos a necessária relativização a ela adjacente borrar a experiência humana concreta, que tentei levar aos meus alunos. Como disse antes, tenho sempre buscado caminhos que me permitam, como educador e como ser humano, tentar, como diz o sociólogo Boaventura de Souza Santos,
"combater a trivialização do sofrimento, por via da produção de imagens desestabilizadoras a partir do passado concebido não como fatalidade, mas como produto da iniciativa humana. Um passado indesculpável precisamen-te por ter sido produto de iniciativa humana que, tendo opções, podia ter evitado o sofrimento causado a grupos sociais e à própria natureza. Deste modo, o objetivo principal do projeto educativo emancipatório consiste em recuperar a capacidade de espanto e de indignação e orientá-la para a formação de subjetividades inconformistas e rebeldes. No entanto, as opções não assentam exclusivamente em idéias já que as idéias deixaram de ser desestabilizadoras no nosso tempo. Assentam igualmente em emoções, sentimentos e paixões que conferem aos conteúdos curriculares sentidos inesgotáveis. Só assim é possível produzir imagens desestabilizadoras que alimentem o inconformismo perante um presente que se repete, repetindo as opções indesculpáveis do passado." [6]
Eu espero que com essa experiência tenha contribuído para a reflexão sobre a relação entre a (velha) sala de aula, suas (novas) possibilidades e a (constante e tensa) relação entre o “real” e o conhecimento histórico. Para mim e meus alunos e alunas de 8ª série do ensino fundamental, na superpopulosa periferia da Japuíba, na “paradisíaca” Angra dos Reis, nosso exercício de “...e se fosse você?” suscitou múltiplas possibilidades de leitura e compreensão de um dos períodos mais tristes da história recente da humanidade. Ela contribuiu, acredito, para desestabilizar, ainda que mínima e momentaneamente a visão de “presente contínuo” de que nos fala o historiador inglês Eric Hobsbawm [7].
Entre todos os trabalhos, o único que foi calcado em um documento real foi o realizado pela aluna Marcela, que reproduzo aqui. Quanto aos demais, poderiam ter sido verdadeiros...
“Alemanha Data: 20/06/1940

Oi, Heinz, tudo bem com você?
Porque comigo não está muito bem pois tenho muitas saudades, não vejo a hora de te encontrar de novo. O que estraga aqui é este frio infernal que acaba com o nosso dia.
Heinz, você precisa ver como eu trato os russos, como eu os maltrato, os humilho, eles são tratados como um monte de bosta, prontos para serem mortos a qualquer hora do dia ou da noite.
Precisa ver a cara de terror [com] que eles ficam quando nos vêem. Acredite em mim, Heinz: se algum dia os russos fizessem comigo a metade [do] que eu faço com eles eu nunca mais sorriria ou iria cantar...
O melhor de tudo eu vou falar agora: é o nosso guia Adolf Hitler. Ele é ótimo, ele nos compreende de uma forma extraordinária, e parece que tudo que nós queremos ouvir ele fala. Parece que ele adivinha nossos pensamentos. Ele é ótimo!
Heinz, saiba que a distância nunca vai nos separar. Te amo muito.” [8]

[1] NEUMAN, Robert & KOPPEL, Helga. The pictorial history of the Third Reich: a shattering photographic record of the nazi tyranny and terror. New York: Bentham Books, 1967, p. 195.
[2] “Relato” do aluno Jorge Luiz da Silva.
[3] “Relato” da aluna Roseli Pires.
[4] NEUMAN & KOPPEL, cit., p. 109.
[5] SILVA, Tomaz Tadeu da. “Os novos mapas culturais e o lugar do currículo numa paisagem pós-moderna”. In: SILVA, Tomaz Tadeu da & MOREIRA, Antonio Flávio (orgs.). Territórios contestados: o currículo e os novos mapas políticos e culturais. Petrópolis: Vozes, 1995, p. 193.
[6] SANTOS, Boaventura de Souza. “Para uma pedagogia do conflito”. In: SILVA, Luiz Heron da; AZEVEDO, Joé Clóvis de & SANTOS, Edmilson Santos dos (orgs.). Reestruturação Curricular: novos mapas culturais, novas perspectivas educacionais. Porto Alegre: Sulina, 1996, p. 17.
[7] HOBSBAWM, Eric. A era dos extremos. O breve século XX: 1914-1991. São Paulo: Companhia das Letras, 1995, p. 13.
[8] “Relato” da aluna Marcela Pimenta.